TEXTOS
1. EU Q NÃO SEI ESCREVER PREFÁCIOS, de DIMITRI BR
2. EU QUE NÃO SEI CANTAR, de PATRÍCIA LINO
3. IMPRESSÕES NUM CORPO QUE NÃO SABE SE SABE DANÇAR: ALGUNS PASSOS A PARTIR DE I WHO CANNOT SING, de LAURA ASSIS
4. SOM SOBRE TOM: CANTATA EM CATADUPA PARA UM LIVRO-ÁLBUM E VINTE E UM MODOS DE O CANTAR, de DIOGO MARQUES
1. EU Q NÃO SEI ESCREVER PREFÁCIOS, de DIMITRI BR
2. EU QUE NÃO SEI CANTAR, de PATRÍCIA LINO
3. IMPRESSÕES NUM CORPO QUE NÃO SABE SE SABE DANÇAR: ALGUNS PASSOS A PARTIR DE I WHO CANNOT SING, de LAURA ASSIS
4. SOM SOBRE TOM: CANTATA EM CATADUPA PARA UM LIVRO-ÁLBUM E VINTE E UM MODOS DE O CANTAR, de DIOGO MARQUES
EU Q NÃO SEI ESCREVER PREFÁCIOS
Dimitri BR 1. não é de hoje q digo q minha banda favorita é o lucas matos lucas matos q é poeta e começa sua traição da canção afirmando: não sei cantar para em seguida indagar — com sua voz grave, seu ritmo de corpo inteiro: quantas notas eu tenho q errar para q a garota de ipanema vá parar no porto? ou na califórnia? gesto semelhante faz patrícia lino, ao anunciar: i who cannot sing — é esta quem aqui se põe a fazer canções ou mixed poetry, como ela prefere (misturas, se diria em portugal) transliterações de poesia em montagens sonoras em música 2. fazer o q não se sabe (não se deve, não se pode) é um gesto punk recusar o limite de fazer do jeito certo; fazer do limite dicção própria ou ainda, um gesto antropofágico — de crer na contribuição milionária de todos os erros lembremos ainda a proximidade de patrícia com a poesia concreta: nada mais concreto q restituir à palavra seu corpo de som 3. toda arte aspira a ser música quem disse isso foi o walter pater mas quem me disse isso foi o victor heringer escritor q afirmava não ser poeta nem saber tocar instrumentos e q não obstante fazia poesia & música com timbres eletrônicos & vozes emprestadas assim como faz patrícia de fato, se há algo q logo nos salta aos ouvidos neste i who cannot sing é q, partindo da palavra-poesia escrita, a autodeclarada não-cantora faz música 4. a canção está morta; há q se reinventar a canção por outro lado, há q se devolver a voz à poesia nos últimos anos, como patrícia, muitos artistas vêm empenhando seus esforços nessa busca de encontrar novas formas de dar som à palavra de percorrer o caminho da poesia de volta ao som (e ao corpo) convocadas por patrícia, ouvimos aqui algumas dessas vozes: angélica freitas, camila assad, cláudia r. sampaio, daniel arelli, guilherme gontijo flores, júlia de carvalho hansen, letícia féres, luca argel, marta chaves, miguel cardoso, pedro eiras, raquel nobre guerra, ricardo domeneck, vasco gato e ainda as de frank o'hara, paul éluard, sylvia plath vozes vivas de poetas mortos 5. já nada mais é como soía, soa a voz de pedro eiras entre (outros) sons mixados por patrícia o dito veio a ser não dito / o fim do mundo caducou / a lei da gramática já não se aplica escrevo estas notas à guisa de prefácio durante nossa quarentena mundial, por ora sem vislumbre de fim se haveremos de inventar um novo mundo, como começar se não por uma nova linguagem? 6. each interpretation follows a process that is in many ways similar to that of translating the multiple and intricate meaning of a literary passage from one language to another partindo das palavras e dicções de outros poetas, os procedimentos de tradução engendrados por patrícia neste álbum resultam em transcriações capazes de nos lembrar q não há só o perdido, mas sempre algo found in translation ouvir i who cannot sing faz de nós o diogenes from san diego no assombro de experimentar com a sua uma nova língua e se ouvir dizer, com uma voz q é sua e dela: pa-trí-ci-a pa-trí-ci-a pa-trí-ci-a |
EU QUE NÃO SEI CANTAR Patrícia Lino |
Tenho o privilégio de não saber quase tudo.
E isso explica o resto. Manoel de Barros o poeta é o dj das palavras Dimitri BR |
É tão natural temer as palavras, que são possíveis e impossíveis, suficientes e insuficientes, como querer lidar permanentemente com a impossibilidade de dominá-las e fracassar. A graça do fracasso deverá ser sempre consideravelmente maior do que o medo.
Ao longo dos últimos anos, e por achá-lo, além de fascinante, óbvio, arrisquei-me no exercício de juntar palavras, imagens, movimento e matéria para compor vários poemas ou objetos poéticos: curtas ou longas-metragens, videopoemas, poemas tridimensionais e miniatura. Continuo a arriscar-me no mesmo exercício todos os dias. Apesar de a música sempre ter sido uma das minhas maiores e mais constantes obsessões e de gravar, com regularidade, certos sons em todas as cidades onde vivi, temia arriscar-me na construção de um ritmo ou melodia. Por isso, os primeiros exercícios transmediais que fiz não incluíam, com a excepção da minha própria voz, som. Desde 2015 que organizo, dentro ou fora das aulas e seminários que ensino na Universidade, oficinas ou espaços em que outros e outras possam experimentar e arriscar-se no cruzamento das palavras com outras formas de expressão. Entre essas oficinas, constam oficinas de poesia e ilustração, memória e pintura ou poesia e vídeo organizadas em vários países (Estados Unidos, México, Colômbia, Brasil, Portugal) com participantes muito diferentes. Nestas oficinas, há sempre quem, de modo compreensível, tema segurar um pincel e àqueles(as) que o temeram eu disse sempre o mesmo: não há razões para o medo. Foi em São Paulo, no final de 2017, depois de uma oficina de poesia brasileira e pintura na Universidade Federal de São Paulo, que um amigo repetiu as minhas palavras para dizer-me que não há razões para temer trabalhar com sons. De facto, não há. Comecei a fazer os primeiros beats no meu apartamento em Pinheiros e, para fazê-los, usei o meu próprio corpo, a voz, alguns copos e a mesa onde costumava escrever. Comecei, ao mesmo tempo, a explorar e a aprender a usar vários programas de computador para fazer mais beats e melhorar a qualidade dos que tinha feito manualmente. Videopoemas como "Copacabana" e "Manual do sobredotado" foram escritos durante este período. A partir de 2017, as oficinas que organizo passaram a incluir exercícios sonoros. O primeiro aconteceu numa aula de general education sobre clássicos da literatura na University of California, Santa Barbara, em que desafiei os(as) estudantes a comporem, em grupos, uma série de canções rap a partir das Metamorfoses de Ovídio. O exercício era claro: reescrever os mitos, pensar musicalmente a escrita, criar ou apropriar um ou mais beats e preparar uma performance. Os(as) estudantes não só gostaram do exercício como passaram a conhecer e a dominar o texto. Tinham, além disso, prazer em contar, nas suas próprias palavras, os mitos. Criámos, mais tarde, um pequeno álbum. Ovid's Metamorphoses in Rap Songs. Fora das oficinas, o primeiro exercício maior que fiz, em que reuni palavras, imagem, som e movimento, foi a curta-metragem Vibrant Hands (VH). Aprendi, enquanto fazia VH, que a experiência de pensar sonoramente aclarava os processos de escrever, desenhar e performar. Seguiram-se a VH vários exercícios falhados. Poemas musicados que nunca cheguei a terminar. A falha mostrou-me, porém, que o poema ganhava novas dimensões quando o interpretava a partir de sons. Percebi ainda isto: o processo de traduzir o(s) significado(s) do poema para sons parecia-se muito com o processo de traduzir um poema de um idioma a outro. Estava, portanto, perante mais um exercício de tradução ou, se quisermos, tradução intersemiótica. Além disso, o som também pode reforçar a dimensão humorística ou política das palavras, como no caso da longa-metragem Anticorpo. Uma Paródia do Império Risível, que parodia o discurso colonial português e será lançada este ano, como um livro-objeto, pelas Edições Garupa. A ideia de fazer I WHO CANNOT SING surgiu logo depois. I WHO CANNOT SING não é um álbum de música, porque eu não sou música e continuo a não saber música. Defini-o, desde do início e por esta razão, como um álbum de poesia mixada, em que a maioria dos sons originais foram retirados de websites de domínio público, programas profissionais de música e mixagem. Modificados mais tarde ou não, o exercício consistiu em articular estes sons, beats e acordes com sons corporais ou gravados na rua e outros dos meus instrumentos, como o sintetizador, o xilofone, as maracas ou o baixo. A articulação foi sempre pensada a partir dos poemas e das vozes dos(as) poetas a lerem os seus próprios poemas. I WHO CANNOT SING é um exercício de apropriação, colagem musical ou pastiche sonoro. E como estudos recentes nos levam a perguntar cada vez mais, o que não é apropriação? [1] Mas o meu interesse não reside aqui. Há muito que deixamos de acreditar no poema, livro, quadro, álbum novos e há muito que reconhecemos o valor e a conveniência das colagens, dos livros recortados (Jonathan Safran Foer, Tree of Codes, 2010), dos que fazem livros colecionando citações ou passagens de outros(as) (Leonardo Villa-Forte, MixLit, 2010; Pedro Eiras, This Is the Way the World Ends, 2019) ou de técnicas como a googlagem (Angélica Freitas). No que diz respeito a I WHO CANNOT SING, o meu interesse reside em criar, com rigor, outro objeto e regressar ao tempo em que escutávamos poesia e o exercício de escuta era tão importante como o da leitura. A ideia do prazer em que tudo isto assenta, bem como a obsessão pelo início, em que a palavra era, para além de verbal, imagem, gesto e som (ou talvez cheiro?), também podem ajudar a entendê-lo. [1] Recomendo, por exemplo, o ensaio Escrever sem Escrever: Literatura e Apropriação no século XXI, de Leonardo Villa-Forte, publicado há um ano (2019) pela Relicário Edições. Villa-Forte é um dos que se concentra precisamente na figura do DJ. IMPRESSÕES NUM CORPO QUE NÃO SABE SE SABE DANÇAR: ALGUNS PASSOS A PARTIR DE I WHO CANNOT SING, DE PATRÍCIA LINO
Laura Assis Texto originalmente publicado na Revista CULT. 25 de Setembro de 2020. Cena 1: tarde de julho, enquanto realizo uma tarefa doméstica qualquer, me pego repetindo não só os versos iniciais do poema de Luca Argel (“oi eu estou com o seu casaco frio / oi eu estou dentro do seu casaco frio”), mas também as notas do piano que acompanham a sequência de oito “ois” que se enfileiram depois desses versos no mix de Patrícia Lino. Minha mente decorou o poema e o riff, que eu inconscientemente tento reproduzir por meio de alguns sons desconjuntados. Sorrio ao perceber que talvez eu esteja cantando um poema. Cena 2: uma manhã de agosto, estou no intervalo entre duas reuniões, diante do computador, como estou agora, quando repito em algum lugar do meu inconsciente, na voz de Camila Assad: “criamos um quarto imaginário / que carregaremos conosco”. E os versos chegam acompanhados do sintetizador que, no mix de Patrícia Lino, entra, intempestivamente, encontrando a voz da poeta em uma mesma cadência e desembocando no verso seguinte: “pode ser grande se você quiser”. Sorrio ao pensar que talvez eu esteja recitando uma música. Cena 3: começo a escrever este texto, exatamente essa passagem que agora leio, escutando a terceira faixa de I Who Cannot Sing. É, portanto, a modulação que acompanha “Lady Lazarus”, do mix e da voz de Sylvia Plath, que me impele a digitar essas palavras. Quanto menor o intervalo rítmico, quanto maior a variação de entoação ou intensidade, mais rápido minhas mãos deslizam pelo teclado, nem sempre acompanhadas pelo raciocínio, e repito, sem pensar, alguns versos que ecoam, conjugando essa repetição ao impulso incontrolável de marcar a leitura com os pés, com os dedos, com as mãos... de sublinhar ritmos ou acompanhar cadências, quase (mas não exatamente) como quem escuta uma canção. Dessa vez eu não sorrio. Meu corpo está ocupado demais reagindo fisicamente a alguma outra coisa: à música, sim, mas não só a música, ao poema, sim, mas não só o poema; uma combinação entre os dois, entre os três. Entre nós três. Este texto, claro, poderia se construir a partir de uma espécie de busca teórica, perseguindo explicações e passando por definições como poesia sonora, tradução intersemiótica, transposição criativa, transcriação, transcodificação. Enfim, com uma apresentação afiada e argumentos que de fato os fizessem brilhar, é possível que todos esses conceitos pudessem ser acessados para definir o álbum de poesia mixada, bastando a quem fosse usá-los a escolha de qual aspecto, entre vários, deveria ser destacado ou qual nuance, entre tantas, seria privilegiada. Também seria possível falar sobre os vários desdobramentos históricos que, desde a antiguidade clássica, elucidam essa ligação original entre poesia e música, que vêm de um mesmíssimo tronco, constituindo-se quase como uma mesma necessidade de expressão que se estende em possibilidades diversas e complementares de criação. A relação entre a lira, o instrumento, e o que há séculos chamamos de lirismo; as intituladas cantigas, praticamente indissociáveis das sequências melódicas que acompanhavam as palavras, a própria ideia de trovar, etimologicamente: “imprimir um tom”. E, ainda, em uma perspectiva contemporânea, logo aqui ao lado e ao mesmo tempo tão longe, o povo Mbyá Guarani, por exemplo, que persiste e resiste entoando seus cantos, uma poesia que não diferencia música, ritmo, dança e palavra. Mas quanto mais escuto o álbum, mais acredito que não precisamos tanto de conceitos para explicar este fenômeno, e sim aprender a permitir que ele incida sobre nós, sem maiores definições ou historiografias que se esforçariam apenas para compreender algo que percebo cada vez mais descolado de um entendimento propriamente dito. E isso porque um dos maiores acertos de I Who Cannot Sing é ter atingido em suas peças de poesia mixada uma organicidade que confere a elas uma existência muito própria. Se originam sim, claro, do poema e do mix, respectivamente, mas essa dupla natureza cria uma terceira, que não obedece às mesmas leis. Insistir num olhar classificador e metodológico talvez seria, então, mais ou menos como ir para outro planeta e querer se comportar da mesma forma ao se deparar com outra atmosfera, outra gravidade. No ano passado, estive em Inhotim com meus alunos do então 8º ano, que tinham na época mais ou menos 13 ou 14 anos de idade, numa excursão que possibilitou a eles passarem o dia no museu, entre galerias e obras. Em um trabalho escolar posterior a essa visita, no qual era pedido que os alunos relatassem por escrito o que viram, pensaram e sentiram a partir das experiências que tiveram por lá, uma aluna, depois de descrever sua visita à Galeria Cosmococa, de Hélio Oiticica, concluiu: “Lá é um lugar que você pode aproveitar com o corpo”. Poucos meses depois, estive numa casa na Serra da Moeda, interior de Minas Gerais. Um local isolado, sem telefone, sem internet, no meio de um vale, de onde não se viam outras casas, apenas a estrada de terra, a mata, e, ao cair da noite, luzes distantes aqui e ali. No início da noite, começamos a escutar sons e sentir a pulsação de uma música diferente de tudo que já tínhamos escutado e que se estendeu madrugada adentro. Não era apenas a música, havia também os cantos, os passos, vozes, o som de pés que marcavam e acompanhavam o ritmo. Tudo aquilo – que, depois descobri, era um ritual xamânico que acontecia em uma propriedade relativamente próxima – parecia ser algo pertencente a outro universo. Quando voltei à cidade, passei dias procurando vídeos de rituais parecidos, buscando YouTube afora as músicas que ouvi naquela noite, e embora algumas até lembrassem as notas, as melodias, palavras difusas, repetições, nenhuma sequer se aproximava da sensação que experimentei naquela madrugada. Nada era misterioso o suficiente, longínquo o suficiente, orgânico o suficiente, real o suficiente. Entendi então que a questão não era a música, e sim sua existência naquela situação, o ritmo que se fundia ao lugar, a ambientação. Além da música, havia a mata, o eco, a noite, a casa... havia, portanto, a música, as palavras, os sons e, completando essa equação, o lugar onde meu corpo estava em relação a eles. Conto aqui essas duas experiências porque depois delas, principalmente, pelo menos de forma consciente, tenho tentado pensar mais na perspectiva de uma escrita (que é o que faço, em termos de criação) e, talvez de forma geral, de um pensamento mais próximo do corpo, dos corpos. Mas no que diz respeito à recepção, ainda não tinha me deparado com nada, no campo mais específico da poesia, que vibrasse na intensidade do que tenho encontrado nas minhas inúmeras audições deste álbum de Patrícia Lino. Lembro então de um verso de Edimilson de Almeida Pereira: “Dançar o nome com o braço na palavra”. Será que logo eu - que não sei, nunca soube, nunca quis e mal tentei dançar – estou, de alguma forma, dançando esses poemas? E independente do nome, da definição dessa obra, dessas obras, o que tenho feito é colocar o corpo na palavra, de escuta aberta e olhos fechados? Acho que isso é o mais próximo que consigo chegar de uma descrição, mas talvez ela, por si só, não diga quase nada. Talvez repetir o poema, senti-lo vibrar na minha garganta, os versos que repito enquanto os dedos percutem, sentir esses sons reverberando de modos tão distintos na minha mente: essas são maneiras de experimentar o poema que extrapolam a linguagem na qual temos o costume de falar sobre poesia. E até mesmo de entender o que é, de fato, a poesia. Se a impressão é algo que fica marcado, esse texto é uma tentativa de descrever uma marca no corpo, e talvez, por isso, falhe, como texto, como fala. A descrição só vai até um ponto, depois disso é necessário deixar-se levar pelo que nos afeta. Lembro então da lição da minha aluna: aproveitar com o corpo. Lembro da mensagem que restou do canto perdido na serra: pensar nas palavras e o lugar onde meu corpo estava em relação a elas. No lugar desse texto, eu poderia, quem sabe, propor uma espécie de rave em outra esfera, nem que seja nos castelos e aldeias escondidos sob nossas peles. A trilha sonora já sabemos qual é. E estão todos convidados. |
SOM SOBRE TOM: CANTATA EM CATADUPA PARA UM LIVRO-ÁLBUM E VINTE E UM MODOS DE O CANTAR
Diogo Marques Eu, que também não sei cantar, muito menos recitar, dizer, declamar, tentarei, no entanto, declantar, o melhor que não sei. Começando pelo som. Pelo som da voz. Pelo som da voz na palavra. Pelo som da voz na palavra rarefeita, em I Who Cannot Sing. Há temas, entre as palavras, (rare)feitas som (rare)feitas tom. Rarefacção. Que não é mais do que afinar, refinar, reafinar a palavra poética, a palavra refeita poema. O apurar de uma dor, por que não, de uma ausência, de uma distância, em metros, quilómetros ou abraços? “And there is a charge, a very large charge, for a word, or a touch or a bit of blood.” Plath é toque. Tocar, nas suas múltiplas acepções. Mas, e por isso, também é pausa. Ritmo sincopado que mede o peso do que ficou dito e, talvez mais, do que ficou por dizer. Há palavras-som nas entrelinhas, como há palavras-imagem. “Já nada é como soía / ainda nem há cinco minutos”, um quadro de Rubens, e outro de Goya, Chronos, Saturno devorando um filho. Voracidade. Do tempo; no tempo. Mas não só. Qualidade de voraz, sofreguidão, apetite devorador. [Palavrofagia. Palavras-som que se mastigam e se regurgitam, para de novo serem engolidas. De um só trago.] Voraz. Diz-se do que incessantemente se traga ou destrói. Por isso é preciso parar. Por isso é preciso escutar. Por isso é preciso calar, com Sartre: “calar-se não é ser mudo, é recusar falar, portanto falar ainda.” Vo(ra)z, como subversão. Cantando-se a ignorância, invertendo-se os polos, e assim criando um microcosmos de I Who Cannot Sing enquanto álbum fractal. Como todos os grandes álbuns, aliás, pese embora a materialidade, aqui ausente, do sulco centrípeto onde se cavam epifanias com verso e reverso. Trata-se, antes, de um movimento centrífugo, irradiando, do centro da palavra feita poema para o mundo do som refeito matéria, em excêntricas espirais entrópicas, como, de resto, todo a ordem de movimentos entre poemas, poetas, e poesias. Dizia eu, subversão. Eu, que não sei cantar. Eu, Diógenes ignorante que sou, lançando aforismos mais do que certos sobre o que parece ser, de resto, tão óbvio. Só que não, por isso o poema, por isso a palavra, por isso o som e o tom: questões de género, cidadania, educação. [O menino não pode ir à escola porque essas coisas, esses valores, deve ser a família a ensinar, “né filho”]... Um poema pertence sempre ao seu tempo, ainda que possa, por vezes, tornar-se intemporal. Um poema tem sempre um lugar, ainda que possa, por vezes, tornar-se apátrida. Um poema tem sempre um nome, ainda que possa, por vezes, cair(-se) no anonimato. [“O nome de cada coisa é o nome de cada coisa é o nome de cada coisa é o”.] Nome-Homem-Nome. Falemos de “um homem homem”, “um homem criança”, “um homem mulher”, “um homem casa”, “um homem inverno”, “um homem com boca”, que espalhe e cante “um homem mundo”. Falemos de um homem poema. De um homem palavra. De um homem som. De um homem voz. “E sem cigarros. /A citar silêncios / O que é duro sem cigarros.” Batimentos. Esbatimentos. Fronteiras. Ténues. Ser-se homem, e ser-se filho da puta. Ser-se filho e ser-se puta de homem. Ser-se puta e ser-se filho de homem. Só. Nobre. Domeneck. DomeNobre. DomeNombre. Nom. Ecos. Cultos. Ocultos?, ainda que declarados por entre os sorrisos de O’Hara, escutamos, com Patrícia, depois de O’Hara. E já que tudo está interligado, a coca-cola, Biarritz, o Nu Descendo as Escadas, Marinetti e os Futuristas, e quase todos os impressionistas, por que não Patrícia enquanto O’Hara. E, por que não, Patrícia enquanto Assad, já que aqui estamos todos interligados, nós sentados em uma sala, e cito, apropriando-me, sempre, “(3 x 4 = 12 metros quadrados) / criamos um quarto imaginário / que carregaremos connosco / pode ser grande se você quiser / pode chamar alguns amigos / pode colocar uma luz azulada.” Pode ser. Pode ser Nacre. Pode ser nácar. Pode ser madrepérola. Pode ser frio. Pode ser concha. Pode ser espiral. Se você quiser. Afinal. O que nos protege, por vezes, é o que nos sufoca. Pode ser azul. De novo. Azul. O Blues como modo de vida. Um azul meridional transposto em compassos ternários precedidos por anacruse, como os metros quadrados desse quarto concha espiral. Onde estivemos. Onde ainda estamos todos. Afinal. Eu, que não percebo nada de música. Muito menos de teatro. Risco e arrisco este retrato espelho rapado, sambado, mixado, “esta pedra porosa que a maré trouxe à costa, a areia e o vento, entrelaçados na duna.” O mar de Aral ou o mar de Arelli. Pra “mergulhar como um parafuso”. E tudo isto, aqui, encalacrado, apropriado, “abraçado”. A palavra, o som, a voz, o som, o toque, o tacto, a palavra, o poema. Atómico e Anatómico. “Como a vida. Dura demais”. Como a carne. “Dura demais.” Como a canção. “Dura demais.” Por outro lado, que interessa se é o poema. “Quem quer saber se é ou não” canção, “que importa se é” livro-álbum ou álbum-livro, “quem leu” ou tresleu Pessoa e Camões. É a vida, Diogenes. É a vida. Digo-te eu, Di-o-go, Di-o-go, Di-o-go. Digo Diogo, Diogenes, Diego, Diogo, digo. Di-go. O que digo “isso poderia não ser talvez uma pergunta.” Digo o meu nome, só, assim, dito escrito. Diogo. Digo Éluard. Digo nom. Digo non. Digo “trianon”. Digo não. Digo mon nom, “sur mes”, “sur ton”, mon nom, “sur le”, “sur la”, mon nom, “sur tous”, “sur toutes”, mon nom, “sur chaque”, mon nom. Nom, non, mon, non, nom, mon, non, nom, nom, nom. Li-ber-té. “Não é isso que faz o escritor?” Não é isso que faz o? Não é isso que faz? Não é isso que? Não é isso? Não é? Non? “Ao fim e ao cabo”, não. “Ao fim e ao cabo”, nada. “Ao fim e ao cabo”, as coisas. “Ao fim e ao cabo”, repara. Ao fim e ao cabo, crê. Ao fim e ao cabo, um lugar. Ao fim e ao cabo, que nom? Ao fim e ao que cabo, que dom? Ao fim e ao que cabo, que tom? Ao fim e ao que cabo, que som? Ao fim e ao cabo, que sou?... fim. |